Daqui há alguns anos, muitos de nós poderemos contar para os que não conheceram, o que é viver em tempos de pandemia. Faremos isso com um suspiro de respeito e de vitória, pois teremos sobrevivido a uma catástrofe de proporções mundiais, assim como os que sobreviveram às guerras mundiais.
Todos aqueles que souberem aproveitar um tempo como este, embora repleto de angústias, dores e tristezas, compreenderão que é também uma oportunidade sem igual para formar pessoas novas, mais fortes e melhores. Creio que será possível para todos fazer um balanço das perdas e dos ganhos diante da pandemia. Sem dúvida, na lista deles poderão constar itens muito profundos e dolorosos, sobretudo para os que perderam pessoas queridas ou para os que se viram sem emprego ou sem os negócios.
No entanto, proponho-me aqui a fazer uma possível lista de possíveis perdas e ganhos em um nível mais espiritual, os quais contribuíram, de alguma forma, para gerar a pessoa nova surgida com a pandemia. A lista poderia ficar assim:
- Declaro a morte em mim da indiferença religiosa, uma vez que percebi quão superficialmente vivia minha espiritualidade, numa afirmação rebuscada de fé, que, contudo, se mostrou vazia e inoperante quando o medo me atingiu. Declaro ter ganhado uma melhor consciência de minha dependência de Deus e, no meu caso, sendo cristão, de que não existe cristianismo verdadeiro sem um efetivo encontro pessoal com Jesus Cristo e sem a vida em comunidade. Afirmo ainda que percebi o quanto estava ofendendo a Deus com minha arrogância, acreditando que a humanidade sobreviveria a qualquer coisa por seus próprios meios, com suas ciências e armas. Também minha arrogância espiritual, pela qual eu queria um deus criado por mim mesmo e à minha disposição, sem jamais, ter que lhe dar satisfação em relação a qualquer ato de minha vida.
- Declaro a perda do horizonte estreito em que me movia, onde só buscava uma vida de prazeres desenfreados, usando as pessoas sem me comprometer, ou me comprometendo somente até quando não houvesse possibilidade de sofrimento. Declaro o fim da busca de amores provisórios, de paixões escravizantes, das dependências afetivas, seja de pessoas ou coisas, como bebidas, drogas e violências.
- Declaro que deixo para trás o homem velho com seu egoísmo desenfreado, que vivia tão somente para acumular bens, que só fazia se preocupar com o seu futuro e o de sua família, sem pensar nos mais vulneráveis. Declaro ter adquirido uma consciência nova de que os bens não podem salvar uma pessoa se não podem salvar a todos. Declaro ter ganhado maior fraternidade, ter me tornado mais irmão de todos e que este sentimento me tornou bem mais livre e feliz do que eu era antes.
- Declaro ter me libertado de toda a ideologia que gerava divisões e provocava discórdias, que apelava ao ódio e à difamação para afirmar minhas posições. Afirmo ter ganhado uma nova consciência, que sabe conviver com o diferente, aceitar opiniões diversas da minha, abrir-se ao debate sadio e necessário para se chegar ao melhor ponto para todos. Declaro ter me libertado dos medos que me levavam a escolher a segurança a qualquer preço, evitando sempre o novo necessário para que a fidelidade se mantenha, ou seja, declaro que aprendi que o que não se renova não pode permanecer fiel a si mesmo.
- Declaro ter perdido aquela ideia nefasta de que a Terra é inesgotável em seus recursos naturais e que foi criada para que dela me utilizasse de maneira predatória e consumista. Afirmo ter adquirido uma consciência mais clara de que se o planeta adoecer, seremos imediatamente afetados. Declaro que ganhei uma admiração profunda pela vida que vive conosco em nossa “casa comum”, e que desejo a ela me dirigir com respeito e reverência, mesmo quando dela precisar utilizar para sobreviver. Aprendi, enfim, que não sou o dono da terra, mas apenas um peregrino sobre ela, a quem foi emprestada para dela viver e dela cuidar.
Por, Dom Walter Jorge
Bispo da Diocese de União da Vitória